quarta-feira, junho 30

Cirurgia para o Romance

Você fala do futuro do bebê, pequeno querubim, enquanto ele ainda chora em seu berço; e esse tema é ainda romanesco, glamuroso. Você fala também com o padre sobre o futuro do vovozinho desagradável que finalmente agoniza em seu leito de morte. E novamente tem-se um tema que provoca uma vaga emoção, dessa vez apoiada no medo.

Mas o que achamos do romance? Pulamos de alegria ao pensar no maravilhoso futuro que o espera? Ou balançamos tristemente a cabeça esperando que essa desagradável criatura não tenha mais do que alguns dias de vida? Estaria o romance em seu leito de morte, como um velho pecador? Ou estaria apenas saltitando ao redor de seu berço, coisinha linda? Vamos dar mais uma olhada nele antes de decidir sobre esse assunto tão sério.

Aqui está, esse monstro de muitas faces, de muitos ramos, como uma árvore: o romance moderno. Ele é quase duplo, como gêmeo siameses. De um lado, o romance de face pálida, o romance intelectual, sério, e que deve ser levado a sério; do outro, esse patife dissimulado e um pouco enganador, o romance popular.

Sintamos por um momento, do lado sério de Briareus, os pulsos de Ulisses, da senhora Dorothy Richardson e do Sr. Marcel Proust, e do outro, as pulsações do The Sheik, do Sr. Zane Grey e, se desejar, do Sr. Robert Chambers e de alguns outros. Ulisses estaria ainda em seu bercinho? Meu Deus! Que rosto pálido! E Pointed Roofs, seria uma espécie de jogo divertido para garotinhas bem comportadas? E Proust! Ai de mim! Você pode ouvir o estertor (respiração moribunda) em sua garganta. Eles mesmos podem se ouvir. E ouvem com uma atenção apaixonada, tentando descobrir se os intervalos são terças menores ou quartas maiores. É realmente pueril.

Eis o romance “sério”, morrendo numa interminável agonia de quatorze volumes, apaixonada e infantilmente interessada por esse fenômeno. “Será que senti um ardor em meu dedinho do pé, ou não?” perguntam-se os personagens do Sr. Joyce, da Sra. Richardson ou do Sr. Proust. “Seria minha aura uma mistura de incenso, chá preto e graxa de sapato, ou então de mirra, toucinho e lã das ilhas Shetland?” A plateia, ao redor do leito de morte, aguarda tranquilamente a resposta. E quando, pronunciada em voz sepulcral, vem finalmente a resposta após centenas de páginas: “Não é nenhum desses odores, mas do puro cloro coriambasis”, a plateia extasiada murmura: “É exatamente assim que me sinto.”

Eis a sinistra e interminável comédia de agonia do romance sério. A consciência é cortada em pedaços tão finos que são invisíveis para a maioria, e você terá que ir pelo cheiro. Durante centenas e centenas de páginas, Mr. Joyce e Miss Richardson esmiúçam, desnudam as menores emoções até as fibras mais finas, dando-nos a impressão de estarmos costurados no interior de um colchão de lã lentamente soldado, e de sermos transformados em lã junto com o resto da lanosidade.

É terrível. É pueril. É realmente pueril, após certa idade, estar constantemente se analisando. Precisamos ser conscientes de nós mesmos aos dezessete anos, um pouco conscientes aos vinte e sete, mas continuar sendo aos trinta e sete indica um bloqueio do desenvolvimento, e nada mais. E se isso continua aos quarenta e sete, trata-se manifestadamente de senilidade precoce.

O conteúdo do romance sério é assim, precocemente senil. Profundamente, infantilmente ocupado com o que sou eu? “Eu sou isso, eu sou aquilo, eu sou o outro. Minhas reações são essas, essas e essas. Meu Deus, e se eu quisesse me observar atentamente, se quisesse analisar meus sentimentos com precisão ao desabotoar minhas luvas em vez de dizer simplesmente que eu as desabotoo, poderia então continuar por milhões de páginas em vez de milhares. De fato, quanto mais penso nisso, mais acho grosseiro e pouco civilizado dizer subitamente: eu desabotoei minhas luvas. Todavia, que aventura apaixonante! Por qual botão comecei?”, etc.

As pessoas dos romances sérios estão tão preocupadas consigo mesmas, com o que sentem ou não sentem, e como reagem a todo tedioso botão, assim como o seu público está apaixonadamente preocupado em aplicar as descobertas do autor às suas próprias reações: “Sou eu! É exatamente isso! Eu me reconheço integralmente nesse livro!” Vejam, isso é mais do que agonia, é quase uma conduta post-mortem.

Serão necessárias algumas convulsões e cataclismos para tirar o romance sério dessa análise de si. A última grande guerra só piorou as coisas. O que se pode fazer? Porque, infelizmente, ele ainda é muito jovem. O romance nunca chegou à sua maturidade. Ele nunca atingiu a idade da razão. Esse jovenzinho sempre agourou o futuro ao se apiedar de si mesmo na última página. O que é simplesmente pueril. Essa criancice tornou-se insuportável, assim como tantos jovens prolongam sua adolescência até os quarenta, cinqüenta, sessenta anos! Uma cirurgia é necessária em algum lugar.

Vejamos agora os romances populares, os Sheik, os Babitt e os romances de Zane Grey. Eles também estão centrados sobre si mesmos. No entanto, possuem mais ilusões sobre si mesmos. As heroínas acreditam verdadeiramente que são mais bonitas, mais atraentes, mais puras. Os heróis se acham mais heroicos, mais bravos e cavalheirescos, mais sedutores. O conjunto do povo se “reconhece” no romance popular. Mas hoje em dia, se reconhece numa espécie curiosa de eu. Um Sheik, que guarda um chicote de reserva, uma heroína com feridas nas costas, mas que é adorada, adorada no final, já sem o chicote, mas com as feridas ainda um pouco visíveis.

A massa descobre um tipo de eu divertido nos romances populares. A moral da história que surge de If Winter comes, por exemplo, é ousada: “Quanto melhor você é, pior para você, pobre de ti, oh!pobre de ti. Não seja tão inviolavelmente bom, não vale a pena.” Ou a de Babitt: “Vá em frente, faça fortuna, e depois acredite que você vale mais do que isso. ... Eles só estão contentes consigo mesmos quando enriquecem. Você pode fazer melhor que isso.”

Sempre o mesmo fermento para fazer você crescer: o refrigerante neutralizando o molho tártaro, o tártaro neutralizando o refrigerante. As heroínas de Sheik, devidamente chicoteadas, loucamente adoradas. As de Babitt, com uma sólida fortuna e chorando com pena de si mesmas. Os heróis de If Winter comes, bons como torta e arrastados para a prisão. Moral: Não seja muito bom, porque você pode ir para cadeia. Moral: Não se apiede de si mesmo antes de ter enriquecido e, portanto, de ser obrigado a chorar de si mesmo. Moral: Não deixe eles te adorarem antes de terem te forçado a te adorar te chicoteando. Você será cúmplice de um crime benigno, como no santo casamento.

Eis o que ainda é pueril. A adolescência que não pode crescer. Atolados no egocentrismo até a loucura. Prolongando a adolescência até a idade adulta e a velhice, como a louca Cleópatra de Dombey and Son, murmurando antes de morrer: “Cortinas rosa”.

O futuro do romance? Pobre velho romance, ele está num canto sujo, bagunçado e apertado. Ou ele pula ou faz um buraco no muro. Em outras palavras, ele tem que crescer. Deixemos de lado essas criancices como: “Será que amo ou não amo essa garota?” “Serei eu pura e meiga, ou não?” “Devo desabotoar primeiro minha luva direita ou minha luva esquerda?” “Será que minha mãe arruinou minha vida ao recusar o chocolate quente que minha esposa lhe preparou?” Essas questões e suas respostas deixaram realmente de me interessar, mesmo que as pessoas ainda gostem cada vez mais delas. Eu simplesmente deixei de me interessar por esse tipo de coisa como me interessava antes. No que me concerne, as coisas puramente emotivas e analíticas já tiveram sua época. Para mim chega! Estou morto para todo mundo. Mas não blasé, nem cínico. Estou simplesmente interessado em outra coisa.

Suponhamos uma bomba colocada sob todo esse estado de coisas, o que aconteceria? Que sentimentos queremos levar para a próxima época? Que sentimentos irão nos carregar? Que impulso secreto irá nos fornecer a força motivadora para um novo estado de coisas, quando nossa ordem das coisas democrático-industrial-queridinha-eu-quero-minha-mãe tiver desaparecido?

What next? É isso que me interessa. “What now?” não tem mais graça.

Se você quiser encontrar no passado livros what-next, você pode retornar aos filósofos gregos. Os diálogos de Platão são pequenos romances estanhos. Acho que a separação da ficção e da filosofia foi a pior coisa do mundo. Elas costumavam ser uma só, desde os tempos do mito. Depois, com Aristóteles, São Tomas de Aquino e o abominável Kant, elas se separaram como um casal resmungão. Assim, o romance se torna insípido e a filosofia, árida e abstrata. Os dois deveriam se unir novamente no romance. Precisamos descobrir um novo impulso na humanidade para criar novas coisas, e é realmente desastroso descobri-lo através da abstração. Não, não; filosofia e religião foram longe demais na via da abstração. Deixemos X para as ovelhas e Y para as cabras; X menos Y igual a Céu, e X vezes Y igual a Terra, e Y menos X igual a Inferno. Muito obrigado! Mas qual é a cor da camisa de X?

O romance tem um futuro. Mas ele deve ter coragem de apresentar novas propostas sem usar abstrações; ele deve nos oferecer sentimentos novos, realmente novos, toda uma linha de novas emoções que irá nos desviar de nossa via emocional. Em vez de choramingar pelo que é e pelo que foi, ou de inventar novas sensações à moda antiga, ele precisa abrir caminho, fazer um buraco no muro. E o público irá gritar e dizer que isso é um sacrilégio. É claro! Quando você passa muito tempo num lugar apertado, e realmente se acostuma com sua estreiteza e falta de ar até considerá-lo extremamente confortável, você fica horrorizado vendo um novo buraco aberto nesse que era seu muro confortável. Você fica horrorizado. Você foge da corrente de ar fresco como se ela estivesse te matando. Mas pouco a pouco, as ovelhas se enfileiraram uma a uma diante da abertura e descobriram um mundo novo do lado de fora.

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