quarta-feira, junho 15

devir-ser-humano

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai! eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo que existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e de sua força inútil.

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa tola capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será e virá a ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante.

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de uma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do grande medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.

a arte mais bonita da cidade...

...Ninguém se assemelha menos ao artista , no que ao seu espírito e objetivos diz respeito , do que os que empregam os mesmos artifícios que ele. A arte do publicitário só é compreensível se estudarmos a mente do vendedor. Cada tem por finalidade vender o seu produto e para tal exagera-lhes as virtudes e suprime-lhe os defeitos. O ilustrador encontra a sua alma gêmea no repórter noticioso ou no fotógrafo que trabalha para os jornais: a verossimilhança das descrições que faz depende daquilo que surge como real aos olhos do patrão. O pintor retratista (o texto foi escrito nos anos 40, troque por cineasta da pobreza) que está muito em voga aproxima-se dos bajuladores da corte, cuja hipocrisia é escada para o sucesso material. E o homem que encomendou alguns quadros porque ficam bem em cima do sofá, ou o decorador e o estilista, partilham a mesma intenção do fabricante, cuja a função é temperar o luxo com os prazeres do sentido.
Não estamos aqui nem para moralizar nem para segregar a arte, distribuindo-a por patamares de qualidade (mas eu estou!). Cada qual com sua obra, e que execute bem, para dela retirar as recompensas que lhe forem mais proveitosas. (momento politicamente correto, mas agora ele volta certeiro) ---->
Mas temos que procurar alhures se quisermos encontrar na ação humana as analogias que irão nos esclarecer acerca das atividades dos artistas. O poeta e o filósofo São quem fornecem a comunidade os objetivos de que o artista também participa. A principal preocupação, que tem, como o artista,é a expressão, em concreto, das suas próprias concepções de real. Como os artistas, lidam com a verdade do tempo e do espaço, da vida e da morte, com os píncaros de exaltação e as profundezas do desespero. A preocupação com estes problemas eternos forja um terreno comum que transcende a disparidade dos meios solucionados para os solucionar. E é da linguagem do filósofo e do poeta, e das outras artes que partilham o mesmo objetivo, que temos que falar se quisermos estabelecer um equivalente verbal para o significado de arte.