terça-feira, maio 1

...um povo de lata...


- Continuou feliz como oficial depois da morte do Coronel?
- Não. Meus camaradas eram uns pulhas. O coronel dizia: “Rapaz, esses burguesinhos são aobrigados a mastigar trinta vezes porque te as tripas tão finas que um grão de ervilha não passa. Efeminados, cheios de vaidade e admiração por si mesmos, apavorados quando descobrem qualquer falha no cadarço dos sapatos, podres como uma perdiz faisadée e sempre certos da verdade. Isso é o que acaba comigo. Uns lambedores, de língua dormente de tanto lamber; certos de estarem sempre com a razão! E pedantes...pedantíssimos! Uma geração de pedantes com meio colhão cada um...”
Constance pôs-se a rir, enquanto lá fora a chuva desabava.
-Oh! Como ele os odiava!
- Não. Não chegava a tanto. Apenas desgostava-se deles. Há uma diferença. Desgostava-se, dizia, porque soldados também ficam pedantes e sem colhões, e de tripas finas. Parece que o destino da humanidade é caminhar pra isso.
- Até os homens do povo, os operários?
- Todos. O fogo está morrendo. Os automóveis, os aviões, o cinema sugam tudo o que lhe resta. Creia-me: cada geração produz outra mais degenerada, com tubos de borracha em vez de intestinos e pernas e cara de lata. Um povo de lata. Uma espécie de bolchevismo mata o homem para entronizar o mecanicismo. O dinheiro, o dinheiro! Todo mundo moderno só pensa numa coisa: matar no homem o velho sentimento humano e reduzir Adão e Eva a picadinho. Todos a mesma coisa. Todos fazem o mesmo: aniquilam a realidade humana. Uma libra pra cada prepúcio, duas libras para cada par de colhões! O que é a cona hoje usada senão como uma máquina de fornicar? Por toda a parte a mesma coisa. Deem-lhes dinheiro para que suprimam todo o fogo da humanidade e só restem máquinas trepidantes.
Mellors tinha o rosto avivado pela ironia e o sarcaso, e os ouvidos atentos a tempestade lá fora.
- Mas será que isso não vai acabar nunca? – inquiriu Constance.
Sim, há de acabar. O mundo realizará sua salvação. Depois de liquidado o último homem verdadeiro, depois que todos estiverem domesticados, todos, brancos, pretos, amarelos, então todos enlouquecerão. Porque a raiz de tudo está nos colhões. E farão um grande auto de fé. Sabe o que um auto de fé significa? Pois farão seu magnífico pequenino auto de fé e se imolarão entre si.
- Quer dizer que matarão uns aos outros?
Sim, minha cara. Se continuarmos neste passo, em cem anos não haverá nesta ilha mais de dez mil pessoas; talvez menos. Gentilmente destruirão a si mesmos, os loucos.
Trovões rimbombavam lá fora.
- Que lindo será! – disse Constance
- Delicioso! Nada mais calmante do que imaginar o extermínio da raça humana e o longo intervalo que se escoará para que venha uma raça nova. E se continuarmos assim, se todos, intelectuais, artistas, governos industriais, operários, toda essa gente continuar a trucidar com frenesi o que resta de sentimentos humanos, de intuição, de boas intenções, se isso continuar em progressão geométrica, ah, então adeus espécie humana. Adeus, meu amor! A serpente irá devorar a si mesma e deixará um vazio em terrível desordem, mas não irreparável. Coisa maravilhosa! Cães selvagens latindo aqui em Wragby; cavalos selvagens galopando à beira do poço de Tevershall! Te Deum laudamus!
Constance ria, mas sem contentamento.
- Mas então deve gostar que sejam todos bolchevistas, pois assim apressam o desfecho!
-Oh, sinto-me encantado. Não os detenho, e não poderia, se o quisesse.
- Porque se mostra tão amargo então?
- Não sou amargo! Se meu galo canta pela última vez, que me importa?
- E se tiver um filho?
Mellors baixou a cabeça.
- Acho má ideia por uma criança num mundo como este.
- Não, não! Não diga isso! – suplicou Constance. – Já carrego comigo uma. Diga que vai ficar contente! – e pousou a mão sobre a dele.
- Serei feliz se a ver feliz. Mas, para mim, isso parece um ato criminoso: fazer alguém nascer.
- Ah! – exclamou Constance revoltada. Sendo assim não poderia realmente querer-me.
Mellors silenciou um momento, de rosto sombrio – e lá fora a chuva continuava a cair.
- Não é bem assim – disse afinal. – Há outra verdade.
Constance sentiu que aquele amargor provinha em parte de sua ida a Veneza – e a ideia a fez feliz. Subitamente descobriu-lhe o ventre e beijou-lhe o umbigo; e, abraçada à sua cintura quente, ficou de rosto encostado à sua pele. Estavam ambos sozinhos no dilúvio.
- Diga-me que quer um filho – murmurou Constance acariciando-lhe o ventre com o rosto. Diga!
- Está bem! – exclamou Mellors pro fim, e ela sentiu uma estranha mudança no corpo do seu amante. – Tenho pensado algumas vezes de o experimentarmos aqui mesmo entre os mineiros Se alguém pudesse dizer-lhe “Pensai em outra coisa que não o dinheiro!” Vivemos demais pelo dinheiro, as nossas necessidades não são muitas...
O rosto de Constance friccionava carinhosamente a barriga, enquanto uma das mãos ela segurava seus testículos. O pênis fremia mas não se levantava. Lá fora, uma chuva torrencial.
- Viver para outra coisa. Que nosso fim não seja unicamente ganhar dinheiro, nem para nós mesmos nem para o que quer que seja. Somos hoje forçados a isso. A ganhar um pouco para nós e muito para os patrões. Renunciemos a isso, gradativamente. Para que tanta fúria? E retrocedamos. Contentemo-nos com pouco dinheiro, porque, no fundo, temos necessidade de muita pouca coisa. Quem tomar essa firme resolução escapará da desordem.
Mellors silenciou por um instante; depois:
- Eu lhes diria: “Olhai Joe! Vedes como vai e vem, vivo e alerta. Soberbo! E vede Jonas! Pesado, frio, porque não se anima nunca. Olhai para vós mesmos: um ombro mais alto que o outro, pernas tortas, pés deformados! Que resultou de tanto trabalhar? Estragos. Tirai a roupa e examinai-vos. Deveis ser vivos e belos, e estais feios e semimortos”. Eu lhes diria isto. E obrigaria os homens a adotarem outras vestes, Talvez calças colantes, de um vermelho vivo, e curta camisa branca. Ah! Se os homens tivessem belas pernas vermelhas, só isso os faria mudar num mês. Voltariam a ser homens! As mulheres que se vestissem à sua vontade, porque, com homens de pernas vermelhas, todas as mulheres voltariam a ser mulheres. Se as mulheres são forçadas a virar homens, é porque os homens o deixaram de ser. Depois destruir Tevershall e erguer algumas belas construções que nos contivessem a todos. E limpar a região e não ter muitos filhos, porque o mundo está superlotado.
Mas não faria sermões aos homens. Apenas os poria nus dizendo: “Olhai. Vede-vos. É a isso que se reduz a quem só trabalha por amor ao dinheiro. Vede Tevershall. É horrível!... Por quê? Foi construída enquanto todos trabalhavam pelo dinheiro. Vede vossas mulheres! Não se apegam aos homens porque os homens não se apegam a elas. Por quê? Porque o tempo todo foi passado na caça ao dinheiro. Não podeis nem falar, nem mover-nos, nem viver. Sois incapaz de satisfazer uma mulher. Não sois vivos. Vede, examinai-vos a vós mesmos.”
Fez-se uma pausa de completo silêncio na cabana. Constance escutava, sempre com a cabeça no colo do amante, a trançár seus pelos um miosótis colhido na floresta. Lá fora, a chuva serenava...
- Você tem quatro espécies de pelos – disse ela. – No peito, duros e de um ruivo sombrio. Aqui, os pelos do amor formam um chumaço ruivo-alourado. São os mais belos de todos.
Baixando a cabeça, Mellors viu os pequeninos miosótis trançado nos seus pelos ruivos.
- Sim, aí é o lugar dos miosótis. Mas será que o futuro não a interessa?
- Porque eu, quando penso que a raça humana condenou a si própria com tanta baixeza, acho que até as colônias não estão bastante longe. A Lua mesmo estaria muito perto; de lá ainda enxergaríamos esta Terra suja, insípida, vagando entre as estrelas, esta Terra que os homens tornaram repugante. Eu me sinto como se bebesse bílis e ela estivesse devorando minhas entranhas; sem nenhum lugar bastante longe pra servir de refúgio. Só quando estou ocupado esqueço disto. Mas é uma vergonha o que o homem fez do homem nestes últimos cem anos; todos transformados em formigas do trabalho, privados da virilidade, da vida. Eu varreria as máquinas da superfície da Terra e poria fim a era industrial, como um grande erro. Mas, já que não posso, e ninguém pode, só me resta ficar tranquilo e tratar de viver minha própria vida – se é que tenho uma vida a viver, do que duvido um pouco.

A trovoada emudecia lá fora, mas a chuva tinha recomeçado forte. Ouviam-se relâmpagos longínquos, espaçados. Constance não se sentia satisfeita. Ele falara por muito tempo e, no fundo, não falara a ela, senão a si mesmo. Parecia completamente empolgado pelo desespero. Mas adivinhava a causa de tudo isto: o seu passeio a Veneza – e isso valia um pequeno triunfo.
Constance abriu a porta e olhou a chuva torrencial caindo como cortinas de aço. Veio o ímpeto de lançar-se ao léu.
Voltou, tirou rapidamente a roupa, desnudou-se toda enquanto ele prendia a respiração. Seus seios pontudos dançavam aos menores movimentos. Pele de marfim na luz vermelha. Calços os sapatos de borracha e saiu correndo para a chuva, como uma selvagem, seios erguidos, braços abertos, dançando uma das danças rítmicas que aprendera em Dresdan. Corria de um lado pro outro, e era uma estranha forma pálida que se abaixava e curvava, ora avançando, ora recuando, ora baixando-se de modo que as nádegas dessem ao homem num ato selvagem de submissão.
Mellors riu automaticamente, e também tirou a roupa. E lançou-se para fora, nu e branco, seguido de Fossie, que latia com frenesi. Toda escorrendo qual uma cascata, Constance voltou o rosto e viu-o. Corria, e ele só via uma cabeça redonda e um dorso molhado, inclinado para a frente pela fuga, e nádegas arredondadas e brilhantes de chuva: uma admirável e encolhida nudez de mulher em fuga.
Constance foi por fim alcançada e abraçada. Deu um grito e sua massa de carne doce e fresca entregou-se. Ele a apertou inteirinha contra o peito, loucamente – àquela massa de carne feminina, macia e fria, que o contato tornava quente como o fogo. E a chuva escorria sobre eles e fumegava... Mellors tomou-lhe os seios encantadores, um em cada mão, e apertou contra si freneticamente, e ficou imóvel a fremir na chuva. Depois, de súbito, derrubou-a no chão e a possuiu rapidamente, prontamente, como um animal.

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